Roma e o Cardeal

Durante o vôo Paris-Roma, rememorava minha primeira viagem à Itália. Tinha sido de trem, sempre o meu meio de transporte preferido na Europa. Mas, como dizia a mãe de um amigo meu do alto de seus oitenta anos, quando a idade chegar... Estou ainda um pouco longe dos oitenta, mas encarar uma noite de viagem, com baldeação e transporte de malas, é uma idéia cada vez menos atraente, pois pelo menos um pouco da idade já chegou, tenho que admitir. Acresce que a maioria das estações européias ainda é politicamente incorreta, as escadas rolantes são poucas, os elevadores menos ainda, e toca a subir e descer escadas para chegar às plataformas certas, e nem todos os trens têm compartimentos de bagagem de uso conveniente...

Por outro lado, a barateamento das passagens aéreas tornou os aeroportos superlotados em todo o mundo. Aviões são hoje muito mais econômicos, confortáveis e seguros, mas as pessoas são as mesmas, e a infra-estrutura pouco mudou. Os check-ins continuam complicados, lentos e intensivos em mão-de-obra. Da fila do despacho passa-se à fila da segurança, cada vez mais complicada por conta de uns malucos que pretendem ganhar o reino dos céus explodindo-se junto com aviões. Uma fila um pouco menor nas emigrações, e chega-se às áreas de espera, onde os restaurantes de boa qualidade foram há muito substituídos por lanchonetes, mesmo nas gastronômicas França e Itália. E aí basta esperar os atrasos dos vôos, raramente evitáveis, por conta do congestionamento do espaço aéreo. Para viagens um pouco mais curtas, o trem continua menos ruim...

Daquela primeira vez, eu tinha saído da Alemanha, depois de um estágio com o Professor Freiermund. Não desgosto da comida alemã, mas, ao cruzar os nevados Alpes suíços, já contava me presentear com uma bela refeição italiana, em minha primeira parada de algumas horas em Milão. Saí da estação central, grandiosa construção da era fascista, e fui procurar um restaurante na redondeza. Estavam todos fechados, por conta de um incidente bastante inusitado.

Giorgio Almirante, então líder dos missini, os neofascistas, foi almoçar em um restaurante milanês. Quando pediu a sobremesa, disseram-lhe os garçons:

Non le serviamo la frutta e il caffè, perché Lei è un fascista.

O inusitado já começa aí, mas gente normal terminaria o incidente reclamando ao dono, ou talvez, no máximo, dizendo alguns palavrões, ou até deixando de pagar a conta. Mas o que aconteceu foi que a Juventude Neofascista foi depois ao restaurante, quebrou-o e surrou os garçons. Em represália, o sindicato dos garçons decretou greve, lo sciopero. Menos mal que afinal achei um restaurante aberto, no qual o próprio dono se desdobrava para servir os fregueses.

Peguei o trem seguinte para Veneza, e na primeira parada fico sabendo que cada uma durará meia hora, em lugar dos dois ou três minutos previstos; os ferroviários estavam fazendo la sosta, a operação-tartaruga. Numa das paradas, já tinha chegado a hora do jantar. Fui procurar o vagão restaurante, e fiquei sabendo que não havia, pois o sindicato dos empregados de vagões restaurantes também tinha entrado em greve. Perguntei a um funcionário se havia alguma possibilidade de comer, e ele me disse para comprar de um cestino que alguns vendedores ambulantes ofereciam pelas janelas do trem. Comprei um dos sacos de papel do cesto, já resignado em comer sanduíche. Quando abri o saco, saíram dele uma bela lasanha, meio frango assado, pão, uma garrafa de vinho e frutas. Isso era a Itália.

Veneza foi uma festa, é claro; tive sorte de achar um hotel bem razoável perto da Praça de São Marcos, façanha que nunca mais consegui repetir. Reservei lugar, bonitinho, em um treno espresso direttissimo di lusso para Roma, mas, quando já estava aboletado, lembrei-me de que tinha deixado dinheiro no cofre do hotel. Quando voltei para a estação, já tinha de correr atrás do prejuízo, pegando um trem para Bolonha, para daí pegar outro para Roma. E era um dia de São Pedro, feriado em todo o país, como ainda é em Roma. Era uma quinta-feira; como os italianos inventaram il ponte antes dos brasileiros, todos os trens estavam apinhados de gente que aproveitava o feriado prolongado.

Percorrendo os corredores do trem, fui achando uma cabine lotada atrás da outra, até chegar a uma onde viajava uma família. O chefe da família tirou um menino da poltrona, colocou no colo, e me convidou a entrar. Era um operário siciliano que trabalhava na Alemanha, e viajava com um casal de irmãos mais novos, a mãe e a mulher, que levava um bebê. Puxou conversa, e foi curioso observar como a irmã mais nova e a mulher apenas sorriam; aparentemente, além do líder da família, só o irmão homem e a mãe tinham direito à palavra.

A conversa girou primeiro sobre futebol, e felizmente não fazia muito tempo que tinham acontecido os 4 a 1 sobre a Itália, na final da copa de 70, de maneira que meus interlocutores não podiam deixar de reconhecer que a vitória brasileira tinha sido merecida, limitando-se a reclamar que quello Rivelino è molto antipatico. Depois o assunto mudou para política, e o irmão mais novo se calou. O líder me perguntou se eram verdadeiras as barbaridades que se contava sobre a Ditadura no Brasil, e eu as confirmei. Disse ele então:

— Isso nunca vai acontecer na Itália, pois aqui somos nove milhões de comunistas. E não só nove milhões de eleitores, mas nove milhões de famílias.

E, apontando para o menino no colo:

— Este aqui, quando crescer, também vai ser um comunista!

A mãe resmungou:

— Comunistas são assassinos, matam padres...

Ele comentou em alemão:

— Essa aí é velha... Não entende nada...

Hoje, como se sabe, o venerando Partido Comunista se transformou no Partito Democratico della Sinistra, e, juntamente com seus aliados da antiga esquerda democrata-cristã, se reveza no poder com Berlusconi e seus aliados neofascistas, por sua vez transformados em neoliberais. E lá ia eu visitar um cardeal xenoetólogo, que hospedava um padre que era líder da Grande Fênix. Isso também era a Itália.

Nas últimas eleições papais, o nome de meu colega tinha chegado a ser citado, mas eu nunca achei que tivesse alguma chance, embora viesse de uma família nobre que, ao longo dos séculos, tinha produzido muitos príncipes eclesiásticos. Mas, tendo em vista a tradição, raramente quebrada, de que os papas não podem adotar o próprio nome, Benedetto Giovanni Paolo Pio Leone Gregorio Papabile teria que homenagear algum antecessor bem antigo, além do que o sobrenome pareceria pretensioso. E, mais importante, Monsenhor Papabile é um dos cardeais mais liberais, discípulo de Teilhard de Chardin e simpático à Teologia da Libertação. Por isso, até me surpreendia que ainda estivesse na Cúria Romana.

Quanto ao líder da Grande Fênix, como me explicou Pierre Lecoq, não se tratava de um padre católico, e sim da Igreja Copta, uma das mais antigas denominações cristãs, alegadamente fundada pelo evangelista Marcos. Mas as duas igrejas mantêm boas relações, desde um encontro entre Paulo VI e o líder copta, que também usa o título de Papa; por outro lado, os coptas têm tido sérios atritos com os fundamentalistas islâmicos, e eventualmente com o governo egípcio, que reprime ambos os lados. Ibrahim al-Dajaj é duplamente odiado pelos chamados Irmãos Muçulmanos, na qualidade de copta e mais ainda de líder da Ordem. Diante disso, e tendo em vista o temor da influência de que os Inimigos dispõem sobre os fundamentalistas, a liderança copta pediu asilo ao Vaticano para ele.

Depois de devidamente instalado em Roma, fui ao encontro marcado com Monsenhor Papabile, em um dos prédios adjacentes à Praça de São Pedro. O Cardeal me recebeu de forma efusiva, e logo respondeu à pergunta que não tinha feito, sobre por que o novo Papa não tinha fechado o Departamento de Xenoetologia da Igreja.

— Para dizer a verdade, meu caro Basileo, até eu esperava isso. Já me imaginava em uma diocese bem remota, perdida nas montanhas como a paróquia de Don Camillo, e até gostava da idéia... Mas em lugar de um prefeito comunista, o meu Peppone seria do Partido Democrático de Esquerda, e não haveria como termos uma bela rixa cordial... Não teria graça... Mas Sua Santidade, além de ser um homem de grande cultura, que reconhece o valor da xenoetologia, estava particularmente interessado em que eu estudasse os fenômenos da religiosidade New Age. Embora longe de ter o apelo popular do fundamentalismo evangélico, acredita ele que esses movimentos têm muito a ver com coisas que o Santo Padre abomina, como o sincretismo, a designer religion, a ambigüidade moral...

Continuando a conversa, o Cardeal passou a me explicar o contexto da presença de Ibrahim al-Dajaj no Vaticano. Confirmou que tinha havido um pedido da Igreja Copta e, se por um lado era adequado dar apoio a irmãos cristãos em dificuldade, por outro lado, a ligação do Padre Ibrahim com a Grande Fênix trazia certo embaraço. Mas, ponderando tudo, a diplomacia vaticana concluiu que a inimizade com a Ordem era coisa do passado distante, e que, de qualquer maneira, a vinculação do asilado a uma seita pagã era problema dos superiores dele, e não de seus hospedeiros. E, por coincidência (Sincronicidade de Jung? Nodo no fluxo do espaço-tempo da Fênix?), aconteceu um fato novo, que trouxe uma boa justificativa para a presença de Padre Ibrahim no Vaticano.

Com grande estardalhaço da mídia, voltou à baila o chamado Evangelho de Judas, texto gnóstico que procura justificar as ações do Iscariota. Visões alternativas de Judas não são novidade alguma, certamente. Jesus Christ, Superstar apresentou Judas como um patriota, que de certa forma desempenhou um papel previsto no script divino, como também quer o Evangelho gnóstico. A Última Tentação de Cristo, de Scorsese, também apresenta Judas como alguém que cobra de Jesus o cumprimento de sua missão, e o ajuda a encontrar seu destino. Na época de JK, havia um deputado e militar brasileiro que fazia campanha para a reabilitação de Judas. Para Dante Alighieri, como demonstrei no primeiro livro, Judas era um membro da Ordem da Grande Fênix, cujo grande demérito foi ter ajudado a transformar uma obscura seita de seus inimigos judeus em uma religião global, que afinal se transformou em inimigo muito mais poderoso, capaz de lançar a Ordem na clandestinidade.

Lembrei ao Cardeal as idéias de Niels Runeberg, suposto teólogo neo-gnóstico, divulgado por Jorge Luís Borges, que teria formulado sucessivas teorias, cada vez mais favoráveis a Judas. A primeira teoria de Runeberg se assemelharia ao Evangelho de Judas, atribuindo a este um papel importante no drama da Paixão: un hecho prefijado que tiene su lugar misterioso en la economía de la redención... Judas, único entre los apóstoles, intuyó la secreta divinidad y el terrible propósito de Jesús.

Contestado pelos teólogos convencionais, Runeberg parte para uma teoria mais ousada: Judas seria movido por un hiperbólico y hasta ilimitado ascetismo. El asceta, para mayor gloria de Dios, envilece y mortifica la carne; Judas hizo lo propio con el espíritu. Obrando com gigantesca humildade, Judas procurou o Inferno, porque a felicidade do Senhor lhe bastava; felicidade essa que, sendo um atributo divino, não deve ser usurpada pelos homens.

Depois de polêmicas ainda mais terríveis, chegou Runeberg à terceira e definitiva tese: o Redentor seria Judas, e não Jesus. Dios totalmente se hizo hombre hasta la infamia, hombre hasta la reprobación y el abismo. Para Runeberg, o desprezo dos teólogos só confirmou o que via como revelação: Dios no quería que se propalara en la tierra Su terrible secreto. Assim descreve Borges o final da vida de Runeberg: Ebrio de insomnio y de vertiginosa dialéctica, Nils Runeberg erró por las calles de Malmö, rogando a voces que le fuera deparada la gracia de compartir con el Redentor el Infierno. Achei esse final bem condizente com Malmö, uma cidade razoavelmente grande que me chamou a atenção pela falta do que fazer à noite, em contraste com a agitada Copenhague, do outro lado do estreito de Öresund.

Comentou o Cardeal:

— Parece um estudo de caso xenoetológico... Várias versões da mesma história, conforme o Efeito Rashomon, e, dentro de algumas das versões, chamemo-las de Borges-Runeberg e Xilóforo-Alighieri, um Efeito Palimpsesto... Mas o Santo Padre imediatamente respondeu com a visão da Santa Madre Igreja: Judas escolheu livremente trair Jesus, rejeitando abertamente o Amor Divino. O Iscariota via Jesus em termos de poder e sucesso, não de amor; era um homem ambicioso, para quem o dinheiro estava acima de Deus.

Não pude deixar de responder:

— O que eu acho um pouco estranho é que trinta dinheiros parecem uma soma relativamente pequena; estima-se que teria na época o poder aquisitivo equivalente a uns seiscentos dólares, o preço de um escravo defeituoso. O preço de um lote pertencente a um oleiro, para ser usado como cemitério de estrangeiros; não devia ser uma área nobre. Um décimo do valor do bálsamo de nardo que Maria Madalena aplica em Jesus, e que Judas acha deveria ser vendido e dado aos pobres.

— Meu caro Basileu, no versículo seguinte São João conta que Judas dizia isso não porque ele se interessasse pelos pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, furtava o que nela lançavam. Não é tão estranho que um tesoureiro corrupto se venda por pouco, principalmente quando se sente excluído e enciumado, e tem uma ideologia para ajudá-lo a se justificar, já que provavelmente era um zelota, um fundamentalista. Como você mesmo gosta de dizer, às vezes procuramos grandiosidade no Mal, quando só existe mesquinharia...

Realmente. Pelo jeito, nem Jesus escapou de ter um tesoureiro de campanha corrupto.

Voltando ao porquê da presença de Ibrahim al-Dajaj, o Cardeal explicou que provavelmente não demoraria para que um autor de best-seller, com apoio de Hollywood, lançasse uma história fantasiosa baseada no Evangelho de Judas, atingindo um público muito maior que autores cult como Borges ou Scorsese. O texto tido tinha sido perdido por muitos séculos, e as referências a ele em textos adversários tinham sido suficientes para criar mitos. Nos anos 70, foi descoberto no Egito o Codex Tchacos, que contém, entre outros textos gnósticos, o chamado Evangelho de Judas. O conteúdo já foi traduzido e divulgado pelo National Geographic, mas o texto está bastante incompleto, deixando campo aberto para extrapolações e especulações de quem esteja interessado em difundir a tese de que a Igreja tenta encobri-lo.

Acontece que o Padre Ibrahim é lingüista, egiptólogo e profundo conhecer do idioma copta, no qual está escrito o Codex Tchacos. É o idioma litúrgico da Igreja dele, derivado do antigo egípcio. Assim, tratava-se de um estudioso altamente capacitado para ajudar os lingüistas vaticanos a entenderem as sutilezas de interpretação e a especularem sobre os fragmentos faltantes. Além disso, é um estudioso do pensamento gnóstico.

Comentei com o Cardeal que me chamava a atenção nos gnósticos o fascínio destes com os vilões. Não só Judas era reverenciado, como também Esaú, o que vendeu a primogenitura por um prato de lentilhas, e principalmente Caim. Respondeu o Cardeal:

— Muitos deles julgavam que o Criador era mau; nas palavras que Borges atribui a Basílides de Alexandria, el cosmos era una temeraria o malvada improvisación de ángeles deficientes. E não nos esqueçamos que Jung, outro ícone da New Age que era fascinado pelo gnosticismo, atribuiu a Basílides a autoria de seus Sete Sermões aos Mortos...

Falando em Jung, mais uma coincidência me chamou a atenção. Basílides, por um lado, é tido como um dos ancestrais dos Xilóforos. Por outro lado, formou uma seita influenciada também pela Cabala e pelo zoroastrismo, cujos membros usavam pedras preciosas cortadas na forma de cabeças de aves e serpentes. O que é muito sugestivo do jogo dialético entre Fênix e Dragão, luz e treva, e todos os demais dualismos embutidos no Bafomé venerado pelos Templários e ressuscitado por Eliphas Lévi e Aleister Crowley, outros ícones dos esotéricos modernos... Bom, há muito que explorar no relacionamento entre gnósticos, como os Basilídeos, e as seitas e ordens que têm a Grande Fênix na ponta da meada. Na História registrada, como essas seitas foram arrasadas pelo Cristianismo em ascensão, quase toda a informação que chegou até nós foi transmitida por seus adversários cristãos.

E é justamente em um verbete da Catholic Encyclopedia que se encontra uma interessante resenha dos conceitos de Basílides. Atribui-se a ele o seguinte princípio: Deus é Não-Ser, mesmo Ele, que fez o mundo do que não era, Não-Ser feito Não-Ser. Basílides também dizia que Deus era a Negação Absoluta, cuja Não-Existência não seria sequer Indescritível; Ele simplesmente Não É. Captaram? Caetano Veloso acrescentaria: Ou não...

Atribui-se também a Basílides a teoria de que Jesus trocou de corpo com Simão, o Cirineu, e este foi crucificado, enquanto Jesus ria de todos. Segundo seus adversários cristãos, o filho e sucessor de Basílides pregava que a livre gratificação dos desejos sensuais é aconselhável, para que a alma encontre repouso na oração. Mais ecos da Grande Fênix...

Em suma, parecia que essa conversa com Ibrahim al-Dajaj seria mesmo bem interessante. Mas o Cardeal advertiu que ela não poderia acontecer dentro do recinto do Vaticano.

— Uma coisa é um sacerdote cristão trabalhando conosco em um assunto de interesse comum a nossas Igrejas. Outra é um líder de uma ordem pagã conversando sobre essa ordem, com um pesquisador agnóstico. Mas tenho um motorista de confiança, que leva o Padre Ibrahim quando precisa ir a outros lugares de Roma, e também funciona como uma espécie de guarda-costas. Ele poderá levar Ibrahim para que conversem em restaurantes, saboreando a boa mesa romana...

     

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